Luís Fernando de Almeida
“A falsidade de um juízo não chega a constituir, para nós, uma objeção contra ele; é talvez neste ponto que a nossa nova linguagem soa mais estranho. A questão é em que medida ele promove ou conserva a vida, conserva ou até mesmo cultiva a espécie.” (Nietzsche, Para Além do Bem e do Mal)
Tomei nestas linhas a iniciativa de fazer um elogio de uma alma nobre. É, no entanto, algo no mínimo insólito para mim o elogio de almas nobres, filho do carbono e do amoníaco que sou.
Ilusão, religião e novas possibilidades do sagrado
Conforme a filósofa Olgária Matos, a tradição racionalista tende a tratar a ilusão como um desvio do conhecimento objetivo, aquilo que perturba a boa apreciação das coisas e obstrui o progresso da razão. Como as dicotomias são próprias a essa corrente, cria-se dualidade entre realidade e ilusão. As manifestações religiosas, vistas por esse prisma, podem hoje se incluir nesse registro sem muita objeção.
Sendo a ilusão um categoria do desejo - como convém a nós admitir na conjuntura a que chegamos - que escapa a delimitações objetivistas e deterministas, não se pode fazer corresponder a ela as categorias de verdadeiro e falso.
O movimento do desejo, ao produzir ilusões, cria-nos possibilidades de superar a condição de precariedade e falta em que ele mesmo jaz submerso. Donde se pode esperar, e mesmo querer, que as ilusões permaneçam entre nós e não nos abandonem.
Se Deus está morto, como prestar tributo ao cultivo de sua memória, o signo vazio que se tornou? Na mesma linha de Nietzsche, que diagnostica a morte de Deus, releva considerar que a experiência religiosa já não se avalia pelo seu valor de verdade. Cumpre-nos diante dela a pergunta sobre o que se está promovendo, se a vida e a espécie são cultivadas.
Não se pode dizer que a experiência religiosa persiste entre nós, cristãos ocidentais. A morte de Deus é sentida pelo discurso retórico, hedonista e vazio de nosso mundo. Há, em nosso meio, outras formas de relacionamento com o sagrado, menos institucionalizadas, menos rigorosas e distantes da normatividade restritiva de outros idos.
É justamente num cenário de elaboração e rearranjo do sagrado que despontam figuras como Padre Fábio de Melo e Celina Borges. É ao reconhecimento desta última que dedico estas linhas.
Celina Borges, cantora mineira, segundo descrição de seu sítio eletrônico, está no topo da listagem dos melhores cantores do Brasil, recebeu em 2010 o troféu nacional da música católica nas categorias “Melhor intérprete feminino” e “Melhor compositor”. Em 21 de abril de 2011, Celina recebeu a Medalha de Honra da Inconfidência, a mais alta comenda concedida pelo governo de Minas Gerais a personalidades que contribuíram para o prestígio e projeção da cultura mineira.
A cantora e compositora resgata em suas músicas a linguagem exuberante de Agostinho, a experiência mística e as excentricidades de alguns santos católicos. Num contexto social em que a busca do sagrado se confunde com a busca de experiências sensoriais, as canções de Celina conseguem atender a essa aspiração do presente com o acréscimo de uma elaboração interior da experiência de ser cristão.
Ao revisitar a tradição, as canções alcançam a leveza capaz de tornar a vivência do sagrado um gesto nobre e sofisticado. No álbum Tributo ao Grande Amor, vivências místicas e aspirações altamente espiritualizadas são tratadas com toda a singularidade de sua linguagem.
As canções de Celina Borges constituem-se, a meu ver, num lugar sagrado, separado, de experiência religiosa, em que se faz possível a reorganização de um elemento da cultura capaz de promover a vida e a enriquecer, processo para o qual não contribuem necessariamente categorias como verdadeiro e falso.
NOTAS
1 – Site da cantora: http://www.celinaborges.com.br/