segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A APOLOGÉTICA CRISTÃ


A APOLOGÉTICA CRISTÃ: VINGANÇA DIVINA E MARTÍRIO NO LIVRO II DA HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO DE CESAREIA.(2002).

Márcio Rogério da Costa Letona
Licenciado em História UFRGS/2003
Especialista em Ensino Religioso CESUCA/2009
INTRODUÇÃO:
Uma primeira leitura do livro II da História Eclesiástica nos revela a riqueza de toda a obra em termos de preservação de textos antigos referentes à história da igreja cristã até o século IV. Estendendo um pouco a análise podemos verificar que estamos lendo bem mais do que uma compilação de informações datadas e classificas cronologicamente próximas da ocorrência dos fatos históricos em questão, isto porque, nosso autor esmerou-se no uso das fontes procurando confirmar a partir destas a veracidade do cumprimento das profecias do antigo e do novo testamento em relação a Cristo e a Igreja.
Segundo DELGADO (1973) os primeiros sete livros da História Eclesiástica apresentam um caráter apologético e os três últimos livros um caráter "panfletário", esta análise confirma nossa impressão inicial, o que é realmente inovador é que a apologética de Eusébio de Cesareia é calcada em fontes históricas não propriamente cristãs, pelo contrário, Eusébio parece querer a partir das fontes dar um caráter muito mais concreto aos textos apostólicos.
No livro II da História Eclesiástica, como um bom autor cristão Eusébio de Cesareia considera os textos bíblicos como verdades absolutas, não dispensando maiores críticas ou discussões, contudo é necessário que façamos uma pequena análise biográfica do autor para melhor situarmos nossa discussão a respeito de suas escolhas para escrever seu livro.
EUSÉBIO DE CESAREIA:
Viveu entre 265 e 340 da era cristã, estudou em Cesareia na escola fundada por Orígenes, foi discípulo de Pânfilo e como destacam CÁDIZ (1954, p. 368) e DELGADO (1973, p. 16) se auto-intitulava "de Pânfilo" em homenagem ao mestre que considerava modelo de toda a virtude. Colaborou com seu mestre na conservação e enriquecimento da biblioteca fundada por Orígenes em Cesareia, fato que possibilitou a produção de suas principais obras: Vida de Pânfilo, Sobre os Mártires da Palestina, Atas dos Antigos Mártires, Cronologia, Vida de Constantino, Preparação Evangélica, Demonstração Evangélica e a História Eclesiástica, assumiu o bispado em 313, tendo exercido forte influência sobre o imperador Constantino.
A grande controvérsia na trajetória de Eusébio de Cesareia é o fato de que ele se alinhou aos semi-arianos, talvez por seu amor a paz da igreja como sugere CÁDIZ (1954), e mais provavelmente por considerar que as controvérsias teológicas que se colocavam eram menos importantes que o esforço apologético necessário para a consolidação do cristianismo, é nesse sentido que lemos o posicionamento de Eusébio nos Concílios de Cesareia, Antioquia e Niceia, nos quais se alinhou com a vontade do imperador, assim como Constantino tinha um interesse estratégico na questão da resolução das controvérsias teológicas, Eusébio de Cesareia também demonstrava este interesse.
VINGANÇA DIVINA E MARTÍRIO:
Uma característica interessante sobre o trabalho de Eusébio de Cesareia é que ele assinala escrupulosamente as fontes que utiliza como podemos comprovar pelo trecho a seguir: "Este livro compusemos com extratos de Clemente, de Tertuliano, de Josefo e de Fílon" (HE II Prol 1), o que ressalta a preocupação do autor com a preservação das fontes e com a confirmação de suas ideias a partir das mesmas.
Eusébio cita Tertuliano informando que o imperador Tibério havia defendido os cristãos perante o senado e interpreta o fato afirmando que: "A celestial providência tinha disposto em por isto no ânimo do imperador com o fim de que a doutrina do Evangelho tivesse um começo livre de obstáculos e se propagasse por toda a terra." (HE II 2, 6). Aqui Eusébio embasa sua apologia no texto de um autor cristão, escrito em 197, seguindo uma perspectiva apologética tradicional, a única diferença é que utiliza uma fonte latina.
A respeito de Herodes Eusébio afirma que: "depois de condenar a este (que era o Herodes do tempo da paixão do Salvador), junto com sua mulher Herodias, ao desterro perpetuo por causa de seus muitos crimes. Josefo é também testemunha destes fatos.” (HE II 4, 1). Aqui se baseando no evangelho de Lucas, Eusébio afirma ser Herodes aquele que viveu no tempo de Jesus e baseando-se nas Antiguidades Judaicas afirma que Flávio Josefo também foi testemunha destes fatos.
No mesmo capítulo Eusébio tece altos elogios a Fílon, destacando seus conhecimentos sobre a filosofia de Platão, procurando ressaltar a validade do uso da obra deste autor como fonte histórica. Aqui podemos notar que Eusébio se alinhava com as ideias relativas a todo o esforço dos diversos teóricos que escreveram ao longo dos três primeiros séculos da era cristã, tentando resolver um dos principais problemas do cristianismo através de considerações teóricas inusitadas.
A questão que se colocava era a seguinte: Como conciliar o deus do antigo testamento extremamente rígido e severo com o deus proposto pelo novo testamento, bom e piedoso? A resposta começou a ser construída pelo alinhamento das ideias platônicas sobre deus com a concepção semita de deus presente no antigo testamento, teóricos como Clemente de Alexandria "puderam adaptar o Deus semita da bíblia ao ideal greco­ romano" (ARMSTRONG, 1998, p. 107).
Fílon já havia teorizado no século I a respeito de um judaísmo platonizado, sua obra Embaixada serve a Eusébio como fonte no século IV. No entanto, Eusébio faz um uso expresso desta fonte declarando que referirá: "somente aquilo que ajude aos leitores a ter uma prova manifesta dos infortúnios que... caíram sobre os judeus por causa de seus crimes contra Cristo" (HE II 5, 6). Eusébio recorta passagens de acordo com seus objetivos destacando aquela na qual César ordena erigir estatuas com a sua efigie nas sinagogas e mais adiante utiliza A Guerra dos Judeus de Josefo para confirmar as afirmações retiradas do texto de Fílon observando que: "Com ele coincide também Josefo ao fazer notar igualmente que os infortúnios que caíram sobre toda a raça judia tiveram seu começo nos tempos de Pilatos e dos crimes contra o Salvador." (HE II 6, 3).
Após apresentar as fontes já mencionadas Eusébio traça um paralelo com o texto bíblico afirmando que: “se cotejares tudo isto com a Escritura do Evangelho, verás que não tardaram muito em serem alcançados pelo grito que proferiram na presença do mesmo Pilatos quando vocejavam que não tinham outro rei senão só César.” (HE II 6, 5). Aqui Eusébio demonstra sua intenção de confirmar os textos do evangelho a partir das fontes apresentadas, isto não significa que o autor questione a veracidade do texto bíblico, mas sim que ele desenvolve um esforço no sentido de confirmá-lo através das fontes históricas.
Eusébio descreve mais adiante como Pilatos, envolvido em grandes calamidades nos tempos de Caio, se viu forçado a suicidar-se e conclui: "a justiça divina, pelo que parece, não tardou muito em alcançá-lo." (HE II 7). Outra observação feita por Eusébio no capítulo oitavo tem também um cunho de confirmação da sagrada escritura como podemos ler pelas palavras do autor quando se refere a grande fome que ocorreu nos tempos do imperador Cláudio: "O sucedeu como imperador Cláudio, sob o qual se abateu uma grande fome (e isto o transmitem em suas histórias inclusive os escritores mais alheios a nossa doutrina) e teve cumprimento a predição do profeta Agabo, segundo os Atos dos Apóstolos".(HE II 8, 1). Quando fala em escritores alheios, o autor se refere a Tácito, Suetônio e Dion Casio, traçando em seguida o paralelo com o fato mencionado no texto bíblico.
Em algumas passagens Eusébio chega a ser repetitivo quando se refere ao que viemos expondo, ou seja, ao fato das fontes não propriamente cristãs confirmarem os textos bíblicos, é o caso de quando ele descreve como Herodes Agripa experimentou a vingança divina: "Mas é de admirar como também concordam com este estranho acontecimento a Escritura divina e a narração de Josefo." (HE II 10, 2). Em seguida o autor reproduz a narração que Flávio Josefo fez do fato nas Antiguidades Judaicas, e ao final reforça novamente sua observação inicial: "Estou admirado de como Josefo, neste e em outros pontos, confirma a verdade das Escrituras divinas." (HE II 10, 10).
Outra analogia interessante que nosso autor fez é quando se refere à obra de Fílon conhecida como De Vita Contemplativa, onde Fílon descreve a vida dos ascetas nos tempos do imperador Cláudio. Eusébio afirma que o texto em questão: "contém claramente as regras da Igreja, observadas inclusive até nossos dias." (HE II 17, 1). Mais adiante Eusébio faz novamente a comparação com o texto bíblico procurando comprovar a associação da descrição de Fílon com o texto sagrado: "também nos Atos dos Apóstolos, que estão reconhecidos como autênticos, se refere que todos os discípulos dos apóstolos vendiam suas possessões e riquezas e as repartiam a todos conforme a necessidade de cada um" (HE II 17, 6).
Até aqui, apresentamos através de vários exemplos do texto da História Eclesiástica, como Eusébio tratou o tema da vingança divina sobre os opositores do cristianismo, analisando suas analogias entre os textos históricos e o texto bíblico. A partir de agora trataremos do nosso segundo tema, ou seja, o martírio na visão de Eusébio.
Eusébio descreve como se deu a morte de Santiago baseando-se nos Atos dos Apóstolos, é interessante observar a semelhança de tal descrição com a do martírio de Jesus descrito no evangelho de Lucas. Segundo Eusébio, Santiago foi apedrejado e posteriormente foi golpeado na cabeça e morreu, em seguida o autor associa o martírio de Santiago com o assédio de Jerusalém por Vespasiano: "inclusive os judeus sensatos pensavam que esta era a causa do assédio de Jerusalém, começado imediatamente depois do seu martírio" (HE II 23, 19).
Mais adiante Eusébio cita Flávio Josefo para reforçar sua interpretação sobre a motivação do assédio de Jerusalém ser o martírio de Santiago, o problema é que Eusébio não refere o texto de Josefo como costuma fazer sempre, isto significa que ele pode ter seguido a outro autor e por descuido não o referiu, ou que tal passagem seja uma interpolação.
Quando se refere ao martírio de Estevão, Eusébio expressa a glória que significava o martírio em sua opinião: "e desta maneira o primeiro também a levar a coroa - a qual alude seu nome - dos vitoriosos mártires de Cristo" (HE II 1, 1). Assim Eusébio expressa que aqueles que eram martirizados receberiam a glória, a vitória e a coroa de Cristo, sendo assim um modelo de dedicação para todos os cristãos como o próprio Jesus.
CONCLUSÃO:
A partir deste primeiro contato com os textos de Eusébio de Cesareia, pudemos perceber que além dos méritos já mencionados por diversos autores, relativos a preservação de fontes mais antigas, das quais só restaram as citações de Eusébio, seu trabalho é de extrema importância para estudo do período tardo-antigo. A produção de Eusébio deixou contribuições não só para a história e para a teologia, mas a sua apologética é inovadora, no sentido de que não foi embasada somente em textos cristãos.
Eusébio parece ter a noção de que suas afirmações devem ser confirmadas pelas diversas tradições, seu discurso busca respostas e confirmações apesar de não contestar as “verdades” do texto bíblico representando uma valiosa produção para o estudo da ascensão do cristianismo, bem como, da fabulosa aliança que a igreja realizou com o império romano do Oriente.
BIBLIOGRAFIA:
ARMSTRONG, Karen. "Uma Luz para os Gentios" In: Uma História de Deus: Quatro Milênios de Busca do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 89-115.
BÍBLIA SAGRADA. Traduzida por João Ferreira de Almeida. Co-edição Sociedade Bíblica do Brasil e Casa Publicadora das Assembleias de Deus, s. d.
CADIZ, Luiz M. de. "Eusebio de Cesárea". In: CÁDIZ, L. M. de. Historia de Ia Literatura Patristica. Buenos Aires: Editorial Nova, 1954, p. 368-374.
DELGADO, Argimiro V. "Introduccion" In: EUSEBIO DE CESAREA. Historia Eclesiástica. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1973, p. 11-43.
EUSEBIO DE CESAREA. Historia Eclesiástica - Libro Segundo. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1973, Vol. 1, p. 61-117.
FOLCH GOMES, Cirilo. "Eusébio de Cesaréia" In: Antologia dos Santos Padres: páginas seletas dos antigos escritores eclesiásticos. São Paulo: Edições Paulinas, 1979, p. 220-224.
THE OXFORD CLASSICAL DICTIONARY. Oxford/New York: Oxford University Press, 1996.
VASILIEV, A. A. “Capítulo II - EI Imperio de Oriente desde el siglo IV a comienzos deI VI”, In: História dei Imperio Bizantino, Barcelona: Iberia - Joaquin Gil, 1946, p. 49-157.