segunda-feira, 6 de setembro de 2010

A APOLOGÉTICA CRISTÃ


A APOLOGÉTICA CRISTÃ: VINGANÇA DIVINA E MARTÍRIO NO LIVRO II DA HISTÓRIA ECLESIÁSTICA DE EUSÉBIO DE CESAREIA.(2002).

Márcio Rogério da Costa Letona
Licenciado em História UFRGS/2003
Especialista em Ensino Religioso CESUCA/2009
INTRODUÇÃO:
Uma primeira leitura do livro II da História Eclesiástica nos revela a riqueza de toda a obra em termos de preservação de textos antigos referentes à história da igreja cristã até o século IV. Estendendo um pouco a análise podemos verificar que estamos lendo bem mais do que uma compilação de informações datadas e classificas cronologicamente próximas da ocorrência dos fatos históricos em questão, isto porque, nosso autor esmerou-se no uso das fontes procurando confirmar a partir destas a veracidade do cumprimento das profecias do antigo e do novo testamento em relação a Cristo e a Igreja.
Segundo DELGADO (1973) os primeiros sete livros da História Eclesiástica apresentam um caráter apologético e os três últimos livros um caráter "panfletário", esta análise confirma nossa impressão inicial, o que é realmente inovador é que a apologética de Eusébio de Cesareia é calcada em fontes históricas não propriamente cristãs, pelo contrário, Eusébio parece querer a partir das fontes dar um caráter muito mais concreto aos textos apostólicos.
No livro II da História Eclesiástica, como um bom autor cristão Eusébio de Cesareia considera os textos bíblicos como verdades absolutas, não dispensando maiores críticas ou discussões, contudo é necessário que façamos uma pequena análise biográfica do autor para melhor situarmos nossa discussão a respeito de suas escolhas para escrever seu livro.
EUSÉBIO DE CESAREIA:
Viveu entre 265 e 340 da era cristã, estudou em Cesareia na escola fundada por Orígenes, foi discípulo de Pânfilo e como destacam CÁDIZ (1954, p. 368) e DELGADO (1973, p. 16) se auto-intitulava "de Pânfilo" em homenagem ao mestre que considerava modelo de toda a virtude. Colaborou com seu mestre na conservação e enriquecimento da biblioteca fundada por Orígenes em Cesareia, fato que possibilitou a produção de suas principais obras: Vida de Pânfilo, Sobre os Mártires da Palestina, Atas dos Antigos Mártires, Cronologia, Vida de Constantino, Preparação Evangélica, Demonstração Evangélica e a História Eclesiástica, assumiu o bispado em 313, tendo exercido forte influência sobre o imperador Constantino.
A grande controvérsia na trajetória de Eusébio de Cesareia é o fato de que ele se alinhou aos semi-arianos, talvez por seu amor a paz da igreja como sugere CÁDIZ (1954), e mais provavelmente por considerar que as controvérsias teológicas que se colocavam eram menos importantes que o esforço apologético necessário para a consolidação do cristianismo, é nesse sentido que lemos o posicionamento de Eusébio nos Concílios de Cesareia, Antioquia e Niceia, nos quais se alinhou com a vontade do imperador, assim como Constantino tinha um interesse estratégico na questão da resolução das controvérsias teológicas, Eusébio de Cesareia também demonstrava este interesse.
VINGANÇA DIVINA E MARTÍRIO:
Uma característica interessante sobre o trabalho de Eusébio de Cesareia é que ele assinala escrupulosamente as fontes que utiliza como podemos comprovar pelo trecho a seguir: "Este livro compusemos com extratos de Clemente, de Tertuliano, de Josefo e de Fílon" (HE II Prol 1), o que ressalta a preocupação do autor com a preservação das fontes e com a confirmação de suas ideias a partir das mesmas.
Eusébio cita Tertuliano informando que o imperador Tibério havia defendido os cristãos perante o senado e interpreta o fato afirmando que: "A celestial providência tinha disposto em por isto no ânimo do imperador com o fim de que a doutrina do Evangelho tivesse um começo livre de obstáculos e se propagasse por toda a terra." (HE II 2, 6). Aqui Eusébio embasa sua apologia no texto de um autor cristão, escrito em 197, seguindo uma perspectiva apologética tradicional, a única diferença é que utiliza uma fonte latina.
A respeito de Herodes Eusébio afirma que: "depois de condenar a este (que era o Herodes do tempo da paixão do Salvador), junto com sua mulher Herodias, ao desterro perpetuo por causa de seus muitos crimes. Josefo é também testemunha destes fatos.” (HE II 4, 1). Aqui se baseando no evangelho de Lucas, Eusébio afirma ser Herodes aquele que viveu no tempo de Jesus e baseando-se nas Antiguidades Judaicas afirma que Flávio Josefo também foi testemunha destes fatos.
No mesmo capítulo Eusébio tece altos elogios a Fílon, destacando seus conhecimentos sobre a filosofia de Platão, procurando ressaltar a validade do uso da obra deste autor como fonte histórica. Aqui podemos notar que Eusébio se alinhava com as ideias relativas a todo o esforço dos diversos teóricos que escreveram ao longo dos três primeiros séculos da era cristã, tentando resolver um dos principais problemas do cristianismo através de considerações teóricas inusitadas.
A questão que se colocava era a seguinte: Como conciliar o deus do antigo testamento extremamente rígido e severo com o deus proposto pelo novo testamento, bom e piedoso? A resposta começou a ser construída pelo alinhamento das ideias platônicas sobre deus com a concepção semita de deus presente no antigo testamento, teóricos como Clemente de Alexandria "puderam adaptar o Deus semita da bíblia ao ideal greco­ romano" (ARMSTRONG, 1998, p. 107).
Fílon já havia teorizado no século I a respeito de um judaísmo platonizado, sua obra Embaixada serve a Eusébio como fonte no século IV. No entanto, Eusébio faz um uso expresso desta fonte declarando que referirá: "somente aquilo que ajude aos leitores a ter uma prova manifesta dos infortúnios que... caíram sobre os judeus por causa de seus crimes contra Cristo" (HE II 5, 6). Eusébio recorta passagens de acordo com seus objetivos destacando aquela na qual César ordena erigir estatuas com a sua efigie nas sinagogas e mais adiante utiliza A Guerra dos Judeus de Josefo para confirmar as afirmações retiradas do texto de Fílon observando que: "Com ele coincide também Josefo ao fazer notar igualmente que os infortúnios que caíram sobre toda a raça judia tiveram seu começo nos tempos de Pilatos e dos crimes contra o Salvador." (HE II 6, 3).
Após apresentar as fontes já mencionadas Eusébio traça um paralelo com o texto bíblico afirmando que: “se cotejares tudo isto com a Escritura do Evangelho, verás que não tardaram muito em serem alcançados pelo grito que proferiram na presença do mesmo Pilatos quando vocejavam que não tinham outro rei senão só César.” (HE II 6, 5). Aqui Eusébio demonstra sua intenção de confirmar os textos do evangelho a partir das fontes apresentadas, isto não significa que o autor questione a veracidade do texto bíblico, mas sim que ele desenvolve um esforço no sentido de confirmá-lo através das fontes históricas.
Eusébio descreve mais adiante como Pilatos, envolvido em grandes calamidades nos tempos de Caio, se viu forçado a suicidar-se e conclui: "a justiça divina, pelo que parece, não tardou muito em alcançá-lo." (HE II 7). Outra observação feita por Eusébio no capítulo oitavo tem também um cunho de confirmação da sagrada escritura como podemos ler pelas palavras do autor quando se refere a grande fome que ocorreu nos tempos do imperador Cláudio: "O sucedeu como imperador Cláudio, sob o qual se abateu uma grande fome (e isto o transmitem em suas histórias inclusive os escritores mais alheios a nossa doutrina) e teve cumprimento a predição do profeta Agabo, segundo os Atos dos Apóstolos".(HE II 8, 1). Quando fala em escritores alheios, o autor se refere a Tácito, Suetônio e Dion Casio, traçando em seguida o paralelo com o fato mencionado no texto bíblico.
Em algumas passagens Eusébio chega a ser repetitivo quando se refere ao que viemos expondo, ou seja, ao fato das fontes não propriamente cristãs confirmarem os textos bíblicos, é o caso de quando ele descreve como Herodes Agripa experimentou a vingança divina: "Mas é de admirar como também concordam com este estranho acontecimento a Escritura divina e a narração de Josefo." (HE II 10, 2). Em seguida o autor reproduz a narração que Flávio Josefo fez do fato nas Antiguidades Judaicas, e ao final reforça novamente sua observação inicial: "Estou admirado de como Josefo, neste e em outros pontos, confirma a verdade das Escrituras divinas." (HE II 10, 10).
Outra analogia interessante que nosso autor fez é quando se refere à obra de Fílon conhecida como De Vita Contemplativa, onde Fílon descreve a vida dos ascetas nos tempos do imperador Cláudio. Eusébio afirma que o texto em questão: "contém claramente as regras da Igreja, observadas inclusive até nossos dias." (HE II 17, 1). Mais adiante Eusébio faz novamente a comparação com o texto bíblico procurando comprovar a associação da descrição de Fílon com o texto sagrado: "também nos Atos dos Apóstolos, que estão reconhecidos como autênticos, se refere que todos os discípulos dos apóstolos vendiam suas possessões e riquezas e as repartiam a todos conforme a necessidade de cada um" (HE II 17, 6).
Até aqui, apresentamos através de vários exemplos do texto da História Eclesiástica, como Eusébio tratou o tema da vingança divina sobre os opositores do cristianismo, analisando suas analogias entre os textos históricos e o texto bíblico. A partir de agora trataremos do nosso segundo tema, ou seja, o martírio na visão de Eusébio.
Eusébio descreve como se deu a morte de Santiago baseando-se nos Atos dos Apóstolos, é interessante observar a semelhança de tal descrição com a do martírio de Jesus descrito no evangelho de Lucas. Segundo Eusébio, Santiago foi apedrejado e posteriormente foi golpeado na cabeça e morreu, em seguida o autor associa o martírio de Santiago com o assédio de Jerusalém por Vespasiano: "inclusive os judeus sensatos pensavam que esta era a causa do assédio de Jerusalém, começado imediatamente depois do seu martírio" (HE II 23, 19).
Mais adiante Eusébio cita Flávio Josefo para reforçar sua interpretação sobre a motivação do assédio de Jerusalém ser o martírio de Santiago, o problema é que Eusébio não refere o texto de Josefo como costuma fazer sempre, isto significa que ele pode ter seguido a outro autor e por descuido não o referiu, ou que tal passagem seja uma interpolação.
Quando se refere ao martírio de Estevão, Eusébio expressa a glória que significava o martírio em sua opinião: "e desta maneira o primeiro também a levar a coroa - a qual alude seu nome - dos vitoriosos mártires de Cristo" (HE II 1, 1). Assim Eusébio expressa que aqueles que eram martirizados receberiam a glória, a vitória e a coroa de Cristo, sendo assim um modelo de dedicação para todos os cristãos como o próprio Jesus.
CONCLUSÃO:
A partir deste primeiro contato com os textos de Eusébio de Cesareia, pudemos perceber que além dos méritos já mencionados por diversos autores, relativos a preservação de fontes mais antigas, das quais só restaram as citações de Eusébio, seu trabalho é de extrema importância para estudo do período tardo-antigo. A produção de Eusébio deixou contribuições não só para a história e para a teologia, mas a sua apologética é inovadora, no sentido de que não foi embasada somente em textos cristãos.
Eusébio parece ter a noção de que suas afirmações devem ser confirmadas pelas diversas tradições, seu discurso busca respostas e confirmações apesar de não contestar as “verdades” do texto bíblico representando uma valiosa produção para o estudo da ascensão do cristianismo, bem como, da fabulosa aliança que a igreja realizou com o império romano do Oriente.
BIBLIOGRAFIA:
ARMSTRONG, Karen. "Uma Luz para os Gentios" In: Uma História de Deus: Quatro Milênios de Busca do Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 89-115.
BÍBLIA SAGRADA. Traduzida por João Ferreira de Almeida. Co-edição Sociedade Bíblica do Brasil e Casa Publicadora das Assembleias de Deus, s. d.
CADIZ, Luiz M. de. "Eusebio de Cesárea". In: CÁDIZ, L. M. de. Historia de Ia Literatura Patristica. Buenos Aires: Editorial Nova, 1954, p. 368-374.
DELGADO, Argimiro V. "Introduccion" In: EUSEBIO DE CESAREA. Historia Eclesiástica. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1973, p. 11-43.
EUSEBIO DE CESAREA. Historia Eclesiástica - Libro Segundo. Madrid: Biblioteca de Autores Cristianos, 1973, Vol. 1, p. 61-117.
FOLCH GOMES, Cirilo. "Eusébio de Cesaréia" In: Antologia dos Santos Padres: páginas seletas dos antigos escritores eclesiásticos. São Paulo: Edições Paulinas, 1979, p. 220-224.
THE OXFORD CLASSICAL DICTIONARY. Oxford/New York: Oxford University Press, 1996.
VASILIEV, A. A. “Capítulo II - EI Imperio de Oriente desde el siglo IV a comienzos deI VI”, In: História dei Imperio Bizantino, Barcelona: Iberia - Joaquin Gil, 1946, p. 49-157.

domingo, 27 de junho de 2010

A LEGISLAÇÃO SOBRE O CASAMENTO MUÇULMANO


A LEGISLAÇÃO SOBRE O CASAMENTO MUÇULMANO.
Neila Marisa Cardoso
Especialista em Ensino Religioso CESUCA/2009

O casamento deve ser sempre de um muçulmano com uma muçulmana, para eles isto é o normal. Pode também ser entre primos-irmãos ou descendentes de primos-irmãos.
O impedimento entre irmãos e irmãs de leite são os mesmos que entre irmãos de sangue, desde que a manutenção tenha passado cinco vezes. A idade para o casamento antigamente era livre. Hoje em dia, a maioria dos Estados promulgaram leis que prescrevem uma idade mínima para o casamento.
Os costumes variam segundo os países, e o noivado ou compromisso têm maior ou menor importância, segundo os lugares. Quanto ao casamento como tal, é feito em dois tempos. Primeiro se assina um contrato entre o marido e o representante legal da futura mulher. Para a validade do contrato, a mulher deve dar seu consenso, se bem que durante muito tempo se tenha convencionado que o silêncio dela era suficiente. O casamento só se completa depois da noite de núpcias, celebrada solenemente e durante a qual o marido e mulher se isolam para consumar sua união.
O repúdio
A palavra árabe “repúdio” que significa mandar embora. È ao homem que cabe a liberdade de mandar embora sua mulher. Esta decisão também afetara os laços de famílias, em conseqüência deste ato. O direito de pedir divórcio também pode ser dado a mulher, se esta explicitou no momento do contrato e se esta cláusula foi inserida no próprio ato, e se for permitido pela escola jurídica onde foi realizado o acordo. Mas a lei de modo algum estimula tal repúdio. Uma tradição bem conhecida declara que o “repúdio é a mais odiosa das coisas lícitas”. De resto, o Corão insiste nas regras de justiça a serem observadas, nos procedimentos de conciliação em caso de briga ou ameaça de ruptura do laço matrimonial.
O casamento temporário
Durante a vida do Profeta, os árabes conheciam um tipo de casamento concluído por um período de tempo limitado. Chamava-se mut’a, que significa desfrute. Os sunitas – grande maioria dos muçulmanos – ensinam que esse tipo de união, embora admitido de início, foi proibido por Mohammad. Por isso proíbem-no hoje em dia. Os xiitas o consideram como uma forma de casamento lícito, e nas obras do Aiatolá Khomeini, anos 70-80, acham-se alusões a essas uniões.
A poligamia
Embora o Islã nunca imponha a poligamia, permite-a, mas sob duas condições: Primeiro, que o número de esposas não ultrapasse a quatro, e em segundo lugar, que o marido trate as diversas esposas com eqüidade, sem favorecer uma em detrimento das demais (Corão4,2-4).
Mas o mesmo texto do Corão 4,2-4 permite, além dessas quatro mulheres de primeira categoria, outras que denomina as “que a mão direita possui”, isto é, as escravas concubinas. Quanto a estas, o texto não menciona nenhum limite. Até o século passado a poligamia não gerou problemas, mas no desejo de ver os países muçulmanos poderosos, e constatando as conseqüências funestas que acarretavam rivalidades entre co-esposas e seus filhos, reformadores muçulmanos como Qâsem Amin, o imame Mohammad Abdoh e outros começaram a reagir com firmeza. Chocaram-se com os tradicionalistas da época. Assinalemos alguns principais argumentos que foram aduzidos durante essas polêmicas.
A favor da poligamia figuram sobretudo as seguintes razões:
· A prática de Mohammad e dos seus primeiros companheiros; o fato de as necessidades fisiológicas do varão em matéria sexual serem mais imperiosas que as da mulher e durarem até uma idade avançada; quando uma guerra diminui o número de homens em relação ao das mulheres; a poligamia aberta e franca é melhor do que todas as hipocrisias dos monógamos que praticam adultério, ou tem amantes.
· Um primeiro motivo a favor da monogamia como forma normal do casamento é a preocupação com o poder político e com o desenvolvimento moderno. Os que desejam a grandeza dos países muçulmanos e que, constatando que muitas vezes a poligamia divide os lares, arruinando assim a educação dos filhos, só vêem a solução em uma educação sólida dos futuros cidadãos, educação essa que exige lares unidos e monógamos. Um dos mais célebres reformadores egípcios muçulmanos, o imame Mohammad Abdoh (falecido em 1905), escrevia: “Não há maneira de educar uma nação na qual está difundida a poligamia”.
· Uma segunda justificativa da monogamia provém da idéia de justiça. O Corão exige que o marido seja “justo” para com as suas mulheres, se tiver várias (Corão 4,3). Ora, um outro versículo da mesma sura parece dizer que a justiça é impossível neste caso (Corão 4,128-129).
A seriedade do casamento
No caso da poligamia, como no caso dos repúdios, muitos muçulmanos hoje em dia fazem valer a seriedade da família.

BIBLIOGRAFIA:

DEMANT, Peter. O Mundo Muçulmano. São Paulo: Editora Contexto, 2004, 428 p.
Bibliografia Complementar:
Livros sobre a religião islâmica, história, cultura e costumes dos povos islâmicos:
ALTOÉ, Adailton.O Islã e os Muçulmanos. Petrópolis, Editora Vozes, 2003. 140 p.

Neila Cardoso
Outubro de 2008.

sábado, 26 de junho de 2010

O SURGIMENTO DA AGRICULTURA NO EGITO ANTIGO


O SURGIMENTO DA AGRICULTURA NO EGITO ANTIGO.(1998).
Márcio Rogério da Costa Letona
Licenciado em História UFRGS/2003
Especialista em Ensino Religioso CESUCA/2009
O período mais conhecido e divulgado da história do Egito é o que os historiadores denominam de período dinástico compreendido entre os anos de 3200 a.C. a 1085 a.C., dividido entre antigo, médio e novo império que compõem as dinastias dos grandes faraós egípcios.
O fato que geralmente é ignorado é que o período imediatamente anterior ao período dinástico foi fundamental para a unificação e possibilitou a história posterior do Egito Antigo, ou seja, sem o surgimento e desenvolvimento da agricultura no período pré-dinástico seria muito difícil o surgimento de uma grande civilização, pois não haveria em tal região os meios necessários à subsistência e assentamento de grandes grupos humanos.
A falta de popularidade do período pré-dinástico é devida ao fato de que os achados arqueológicos deste período são ofuscados pela grandeza das construções monumentais do período dinástico e também pela complexidade cultural da civilização egípcia que despertou grande interesse popular.
Por outro lado, existe então no período pré-dinástico o surgimento e desenvolvimento da agricultura que não deixou documentos escritos mas apenas o que os arqueólogos denominam de cultura material, ou seja, os artefatos produzidos e utilizados pelos grupos humanos para caçar, pescar, cultivar alimentos e outros ligados aos cultos religiosos e para os mais diversos fins.
No intuito de contribuir para a divulgação deste período de transição entre a pré-história e a história antiga realizamos um pequeno estudo descrevendo a cultura material no Egito pré-dinástico que para os interessados nos períodos remotos da história pode ser de grande utilidade.
A CULTURA MATERIAL NO EGITO PRÉ-DINÁSTICO:
1 - Introdução:
Para analisar a cultura material, ou seja, os artefatos de pedra e outros materiais produzidos neste período nos parece mais adequado seguir os indícios arqueológicos de diversos sítios que foram estudados no Egito e que são referentes a antigas ocupações humanas na região. Assim, as evidências arqueológicas apontam para o vale do Nilo, próximo ao atual deserto. Na região do delta encontra-se o povoado de Marmadat que juntamente com Fayum e Deir-tasa constituem os mais antigos centros agrícolas africanos.
É provável que estes povoados tenham se estabelecido na região devido ao regime de cheias do Nilo que propicia ali um local adequado ao desenvolvimento agrícola, além disso, conforme Clark, a economia desses povoados se complementava com a caça, a pesca e a domesticação de animais.
2 - Os principais sítios e seus indícios:
2.1 - Fayum:
Em Fayum foram encontrados dois períodos de ocupação distintos, sendo o primeiro caracterizado pelo uso de peças lascadas e retocadas, pontas de projétil triangulares e de base côncava, sendo algumas dentadas, arpões de osso, pequenas foices bifaciais e outras feitas com paus retos e reforçadas com dentes de sílex, além de inúmeros machados e ancinhos de pedra polida que segundo Clark pode indicar que a madeira era usada em larga escala.
A cerâmica deste primeiro período de ocupação se constitui de vasos em forma de saco e pratos de fundo chato, decorados ou não também foram encontradas contas perfuradas de casca de ovo de avestruz e palhetas de pintura utilizadas para pintar o corpo, esta ocupação tem datas entre 4400 (± 180) e 4200 (± 250) a.C. baseando-se na análise radiocarbônica de restos de trigo daquela época.
Em uma segunda etapa de ocupação foram encontrados em Fayum evidências de um longo período de seca, no qual os principais artefatos encontrados foram pontas de projétil de base côncava feitas de sílex.
2.2 – Marmadat:
Na margem esquerda do delta encontra-se Marmadat (Merimde) que era um grande povoado com cerca de 500 metros de diâmetro com tecnologia similar a encontrada em Fayum, os principais artefatos encontrados em Marmadat são bifaces, pontas de projétil com base côncava e raramente pedunculada, figuras de argila, agulhas de osso, cerâmica vermelha decoradas com padrões de acabamento contrastantes, lisos e ásperos em também ganchos farpados para a pesca, semelhantes aos usados pelos natufianos na Palestina.
2.3 – Ma’adi:
Nas proximidades da cidade do Cairo está Ma’adi, local onde foram encontrados poucos bifaces não polidos, buris, muitos perfuradores e grandes raspadores semelhantes aos da idade do bronze na Palestina, restos de cobre, pontas de projétil pistiliformes e cerâmica muito variada, indicando conexões com a Síria.
2.4 – Deir-tasa:
Em Deir-tasa, único povoado do alto Egito em que foram encontrados indícios neolíticos semelhantes aos achados em Fayum e Marmadat, resgataram-se algumas peças polidas, agulhas e arpões de osso, além de potes de cerâmica de boca grande alongados com base redonda e bordas alongadas com decoração de desenhos gravados que sugerem protótipos de cestos.
3 – As culturas Badariana, Amratiana e Gerzeana:
3.1 A cultura Badariana:
Quem parece ter lançado as bases da cultura pré-dinástica, inclusive pelos traços encontrados em Hammamia, estratificados abaixo de níveis pré-dinásticos é a cultura denominada Badariana, de El Badari, onde foram encontradas foices de lascagem bifacial, pontas de flecha em forma de asa, tigelas de cerâmica e pratos abertos, pretos por dentro e nas bordas.
Os badarianos usavam o cobre martelado para fazer contas para adorno, e pintavam o corpo como indicam achados de palhetas para pintura corporal feitas de pedra com restos de pigmento vermelho.
3.2 A cultura Amratiana (Naqada I) ou pré-dinástica inferior:
É provável que a cultura Badariana tenha dado origem à cultura pré-dinástica inferior ou Amratiana ( de Amrah, necrópole situada a 10 quilômetros ao sul de Abidos) também citada como cultura de Naqada em virtude de ter sido encontrada no povoado de mesmo nome.
Os principais artefatos deste período evidenciam que a base da tecnologia ainda era lítica, tendo sido encontradas pontas de projétil em forma de folha e triangulares, pontas de lança em forma de rabo de peixe, e longas lâminas de adaga, previamente modeladas e retocadas por pressão muito bem controlada, também foram encontrados machados e perfuradores polidos.
Havia a fabricação de cerâmica mais rudimentar que a Badariana, em contrapartida fabricavam finos vasos de pedra (alabastro), também usavam, como os badarianos, muitos adornos como pentes de marfim com figuras de animais, braceletes e contas polidas, além de contas e alfinetes de cobre.
3.3 A cultura Gerzeana (Naqada II) ou pré-dinástica superior:
No período pré-dinástico superior ocorre o grande avanço tecnológico da introdução da metalurgia, evidenciando na cultura Gerzeana (de Gerzeh Necrópole do médio Egito próximo a Meldrin), onde desenvolveram a técnica de fundir peças de cobre como machados chatos, facas com nervuras e facas chatas, paralelamente à metalurgia continuaram a utilizar a indústria lítica utilizando a técnica de lascamento por pressão.
Surgem novas técnicas, originárias da Ásia como o uso de lâminas obtidas de núcleos prismáticos preparados, cabeças de flechas transversais e substituindo a pedra polida, adotaram o uso da faiança, substância complexa que consiste em um núcleo artificial de quartzo finamente pulverizado, cimentado por fusão e revestido por um esmalte vidrado.
Nesta mesma época tornam-se possíveis as relações comerciais com outras regiões, pois, muitas matérias primas são originárias de locais distantes, como: cobre do deserto oriental ou do Sinai, chumbo e prata da Ásia, lápis-lazuli do Afeganistão que provavelmente passava pela Mesopotâmia. Além disso há evidências do uso de barcos para transporte de pederneira minerada, vasos de pedra e provavelmente outros materiais perecíveis através do Nilo.
Conforme a argumentação a seguir: “A cultura Badariana, por exemplo, pode ter existido em todo o Alto Egito e a cultura Amratiana pode ter-se estendido para norte tanto quanto a Gerzeana.
As comunidades mais ricas e culturalmente avançadas do Alto Egito se instalaram provavelmente em níveis atualmente soterrados ao longo das margens do rio, permanecendo, assim, ignorados por nós”.
1 Podemos inferir que o conhecimento atual sobre a cultura material do Egito pré-dinástico é parcial, e que à medida que forem realizados e publicados novos estudos arqueológicos teremos uma melhor aproximação da sua grandeza tecnológica.
BIBLIOGRAFIA:
TRIGGER, Bruce C. Além da História: os métodos da pré-história, São Paulo: Ed. Universidade de São Paulo, 1973, pp.91-135.
CLARK, John G. D. Capítulo 8 - África In: A Pré-história, Rio de Janeiro: Zahar, 1975, pp. 179-200.
ALMAGRO BASCH, Martin. “Capítulo XIII - Las Culturas Neolíticas Africanas” In: Manual de História Universal, Tomo I, Madrid: Espasa-Calpe, 1960, pp. 545-585.
1 TRIGGER, Bruce. Além da história: os métodos da pré-história, 1973. p.109

HISTORIA MAGISTRA



Estou criando este blog com o objetivo de divulgar textos de pesquisa nas áreas de História e Religião, sou professor de História e Ensino Religioso há sete anos, atuo no Ensino Fundamental e já atuei no Ensino Médio, acredito que o conhecimento se constrói em vários níveis, e atualmente a Internet é um importante instrumento de divulgação e interação entre pesquisas das diversas áreas do conhecimento.